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Review Fora de Época: O Senhor dos Anéis

  • Foto do escritor: IA Santos
    IA Santos
  • 16 de jul.
  • 6 min de leitura

A obra ainda sustenta seu lugar de grande épico da fantasia, mas nem tudo permanece sagrado na Terra-Média

Ainda me arrepio quando ouço a frase “O mundo mudou…”. Por isso, não espere total isenção.
Ainda me arrepio quando ouço a frase “O mundo mudou…”. Por isso, não espere total isenção.

Preciso deixar uma coisa clara antes de continuar: pra mim é simplesmente impossível ser completamente imparcial sobre O Senhor dos Anéis.


Escrevo esse texto numa segunda-feira, depois de passar o domingo revendo a trilogia na companhia da minha esposa que assistiu os três filmes - “A Sociedade do Anel”, “As Duas Torres” e “O Retorno do Rei” - pela primeira vez.


Sou um nerd de quarenta e um anos que passou a adolescência jogando Dungeons & Dragons e viveu ao lado de seus amigos (também nerds) toda a emoção de aguardar a estreia de cada um dos filmes no cinema, passando o dia inteiro aguardando na fila para comprar ingresso.


Ainda me arrepio quando ouço a frase “O mundo mudou…”. Por isso, não espere total isenção.

Dito isso, garanto que tentarei não escrever como um fã. Ao contrário, este “Review Fora de Época” nasceu da minha tentativa de - pela primeira vez - revisitar a Terra-Média de maneira mais crítica, despido das amarras da nostalgia. O que segue é o resultado dessa experiência.


A Terra-Média continua impressionante


É difícil acreditar, mas fazem quase vinte e cinco anos desde o lançamento de "A Sociedade do Anel"! Posso afirmar sem medo que a trilogia de Peter Jackson permanece merecendo seu lugar de grande expoente do cinema de fantasia. Mas será que ainda funciona para o público de hoje?


Do ponto de vista técnico, O Senhor dos Anéis ainda mantém um impacto audiovisual que muitas outras ótimas superproduções que vieram depois não conseguiram sustentar - sem contar às que não conseguiram sequer alcançar.


A direção de arte é absurdamente rica, com cenários, figurinos e maquiagem feitos quase inteiramente de forma artesanal e a grande maioria dos efeitos visuais continuam competentes, para dizer o mínimo. Mesmo as cenas que contam com uma CGI mais datada ainda deixam na gente uma sensação de “mano, como os caras conseguiram fazer isso na época?”.


Tudo isso muito bem abraçado pela trilha sonora espetacular de Howard Shore, que na minha opinião, está no panteão das trilhas mais reconhecíveis e emocionantes da história do cinema.


A jornada para destruir o Um Anel


O Senhor dos Anéis foi escrito por J.R.R. Tolkien entre os anos de 1937 e 1949, com muitas passagens criadas durante a Segunda Guerra Mundial. A história reflete seu olhar sobre o mundo: uma obra com raízes no mito, na tradição e na dualidade clara entre luz e sombra. Uma narrativa que conversa bastante com a mentalidade do seu tempo e que revela a intensa paixão que o autor nutria pelo universo que criou.


Aqui, o bem e o mal são forças cósmicas muito bem definidas e não dilemas morais. O que torna para muitos - inclusive eu - uma leitura cansativa em vários momentos.

No entanto, Peter Jackson e sua equipe acertaram ao conseguir equilibrar a linguagem cinematográfica com a cadência contemplativa que dialoga diretamente com a visão de mundo de Tolkien. A produção revela o apego quase espiritual à linguagem, cultura e a simbologia da obra original, sem comprometer (na maior parte do tempo) o ritmo que se espera dos blockbusters - que buscam alcançar o grande público.


O elenco também incorpora com grande maestria os arquétipos bem definidos que seus personagens representam. Frodo é o indivíduo comum que recebe o chamado à aventura; Gandalf é o mentor resoluto; Aragorn, o herói relutante; Sam, o companheiro altruísta e por aí vai… 


Se por um lado as motivações dos personagens carecem de maior profundidade devido ao maniqueísmo da obra; por outro, o roteiro, a direção e o ótimo trabalho dos atores garantem que eles amadureçam através de diálogos bem construídos e conflitos paralelos apresentados durante toda a história. Isso mantém o interesse do expectador. 


Mas como disse antes, dessa vez busquei ver a trilogia de uma maneira mais crítica. Mais do que isso, procurei imaginar como hoje um jovem de dezoito anos - idade que eu tinha quando vi A Sociedade do Anel - receberia a história. E infelizmente enxerguei alguns detalhes que podem ser considerados problemáticos.


O Senhor dos Anéis seria cancelado hoje?


Acho importante reforçar: a grande maioria das obras literárias reflete o contexto em que foram escritas — tanto em linguagem quanto em visão de mundo.


O Senhor dos Anéis não é exceção. A obra carrega consigo escolhas criativas que - embora façam sentido dentro de seu contexto histórico - podem (e devem) causar estranhamento no tempo presente.


Uma das questões considerada problemática é a ausência de representação feminina. Mas discordo em partes dessa premissa.

Apesar de realmente não assumirem papel de protagonismo, as decisões das mulheres causam impacto direto na história, além de surgirem de motivações próprias e legítimas. Posso citar, a jornada de Éowyn é um bom exemplo.


Concordo que apenas um exemplo não seja suficiente para garantir representatividade, principalmente se formos comparar com o que se espera das obras do gênero atualmente. Porém - e mais uma vez considerando o contexto em que foi escrita - ainda enxergo a obra como sendo à frente do seu tempo nesse aspecto.


Infelizmente o mesmo não ocorre com a diversidade étnica na Terra-Média. E aqui não me refiro somente a falta de pluralidade entre os protagonistas, mas principalmente da própria estrutura moral da narrativa.

Os povos saxões são claramente associados à luz, sabedoria e ordem. Enquanto seus inimigos - que são visivelmente inspirados nos povos orientais e africanos - são apresentados como bárbaros que se unem aos exércitos de Sauron e Saruman por pura ganância ou simplesmente "porque são maus". O que no subtexto poderia ser entendido como "porque é da sua própria natureza".


Observe que não estou acusando Tolkien de ser etnocêntrico ou xenofóbico. Chamo a atenção para as armadilhas provocadas pelo maniqueísmo muito comum aos grandes clássicos e também para o fato de que basta um olhar mais crítico para perceber o quanto essas escolhas são fruto de uma tradição narrativa ocidental histórica que, em muitos momentos, romantiza a própria pureza e demoniza o outro.


Por fim, não acho que O Senhor dos Anéis mereça um cancelamento tardio, embora acredite que os críticos mais militantes teriam bons argumentos para fazê-lo caso a obra fosse lançada nos dias de hoje.


O tortuoso caminho para a Montanha da Perdição


Retornando a aspectos menos problemáticos e especificamente relacionados à narrativa, acredito que o ritmo contemplativo e a solenidade constante nos diálogos possam soar como tediosos - ou mesmo “cringe” - para um público mais acostumado às narrativas modernas, mais ágeis e dinâmicas.


Consigo imaginar tranquilamente um adolescente vendo a trilogia pela primeira vez protestando: “'Mermão', quanto tempo essas árvores vão demorar para decidir atacar a torre do mago lá?"

Mas esse nem é um grande problema. A gente responderia para o adolescente: "outra época" e esperaria que fosse suficiente. Porém, depois de reassistir o que realmente não dá pra passar pano — mesmo com toda a boa vontade — é o clímax da jornada.


A decisão sobre o destino de certos personagens e a ausência de consequências proporcionais às terríveis decisões que são tomadas, somadas a um dos exemplos mais explícitos de Deus Ex Machina da cultura pop, fazem com que o desfecho de O Senhor dos Anéis só não seja completamente decepcionante porque os epílogos são bastante competentes em nos fazer esquecer dos inúmeros "porque sim!" do roteiro.


Mas ainda vale (muito) a pena


Revisitar à trilogia de O Senhor dos Anéis foi um exercício de contraste entre o que me encantava incondicionalmente em 2001 e o que hoje me provocou reflexão. E mesmo depois de vinte e cinco longos anos, ainda é um prato cheio para um público mais disposto, especialmente os apaixonados por fantasia, independentemente da idade.


Peter Jackson e seu time de profissionais excelentes fizeram um golaço ao respeitar o tempo de construção da obra que quiseram adaptar e da história que decidiram contar.

Mesmo os trechos considerados mais arrastados não são vazios. Ao contrário, são repletos de simbologia e da contemplação tipicamente Tolkeniana, ao mesmo tempo que trazem consequências para a história.


Além disso, também há muito o que se aprender com a obra - especialmente se você é escritor ou aspirante a contar suas próprias histórias. Trata-se de um verdadeiro manual sobre construção de mundos coerentes, valorização da linguagem simbólica e comprometimento com o tom da narrativa.


Aliás, se você busca entender melhor como esses elementos se combinam para criar uma fantasia verdadeiramente imersiva e inesquecível, sugiro o ebook Anatomia da Fantasia Perfeita — uma leitura essencial para quem quer escrever (ou apreciar) boas histórias do gênero com mais consciência técnica e criativa.


J.R.R.Tolkien deu vida a um universo através de idiomas, mapas, mitologias e ritmo próprios. Não à toa, ainda merece ser reconhecido como pai (ou seria avô?) da Fantasia. E O Senhor dos Anéis é sua obra-prima.

REVIEW FORA DE ÉPOCA

⭐️ Avaliação final: 4,9 de 5 estrelas

O Senhor dos Anéis permanece enorme, indiscutivelmente épico e extremamente belo. Mas já não é totalmente indiscutível. E talvez, isso seja o que torna a obra ainda mais interessante


IA Santos

(Desde 2001 imitando o Gollum em todas as trilhas por onde passa)


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