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Quantas Vidas

  • Foto do escritor: IA Santos
    IA Santos
  • 2 de mai.
  • 4 min de leitura
A representação do Diário de Nando desenvolvida em IA
A representação do Diário de Nando desenvolvida em IA

Retalhadas, porém intactas


Clara sentiu a mão gelada percorrer suas entranhas quando a enfermeira anunciou a chegada da visita com batidas discretas na porta. Teve sensações de desmaio quando Stefanie entrou no quarto.


Stefanie mantinha uma altivez meio torpe, que apenas os traídos buscam manter diante de seus desafetos. Carregava um semblante soturno, com os olhos fundos de muito choro. De fato, os resquícios de lágrimas ainda teimavam em dissolver a maquiagem escura, denunciando a dor que lutava para esconder diante daquela que durante anos foi a responsável pelo seu sofrimento.


Em silêncio depositou o vaso com a orquídea no móvel ao lado da cama. O mesmo silêncio com que abriu a bolsa buscando algo. É o diário do Nan - interrompeu-se - do Fernando. - Disse por fim, oferecendo o caderno velho e cheio de marcações para Clara.


Clara aceitou o objeto com relutância, ajeitando-se com dificuldade para sentar na cama sentindo os desconfortos que eram físicos, mas, principalmente emocionais. Onde Stefanie queria chegar com aquilo? - pensava, mas sem cogitar perguntar. Abriu em uma página que só não era aleatória porque existe destino. Um clipe prendia um bilhete de entrada para um show. O show. Embaixo estava escrito:


“O que você faria se só te restasse um dia?

Se o mundo fosse acabar

Me diz o que você faria”


“Quando eu a encontrei no show, o Moska cantava ‘O Último Dia’. Ela me fez pensar em seus versos. Seu nome é Clara.”


Stefanie sentou-se na poltrona de acompanhante sem ser convidada, fingindo não perceber o sorriso discreto que floresceu nos lábios de Clara ao ler a página, assim como também tentava ignorar o sentimento rubro e quente que insistia em escalar sua garganta.


- O diário estava no porta-luvas do carro na hora do acidente - Stefanie disse de repente controlando a respiração, mantendo o olhar firme nas margaridas pintadas no quadro brega para não ter que mirar a mulher ao seu lado. - Pelo que li, talvez seja melhor que fique com você.


Clara começou a sentir náuseas. Não conseguia discernir se Stefanie agia daquela forma de propósito, para provocá-la, ou se cada pausa entre as palavras era necessária para conter o seu ódio, talvez até por um pouco de solidariedade… Difícil dizer. Ela sempre pareceu ser uma incógnita.


- Na verdade eu sempre soube - Stefanie falou de repente, como se pudesse ler os pensamentos de Clara. - Desde aquele maldito show… Em todos esses anos, o Fernando nunca me pertenceu tanto quanto pertenceu a você.


Clara ofereceu um copo d 'água quase murmurando, sem conseguir encontrar as palavras em meio àquele espetáculo lamentável. Duvidava muito que Stefanie fosse visitá-la apenas para entregar um caderno em que a maioria das páginas era dedicada a outra mulher. Dentre suas características questionáveis, a autocomiseração definitivamente não era uma delas. Além disso, os supostos segredos de anos contidos naquelas páginas não deveriam ser suficientes para levar um deslize moral até àquelas consequências. Afinal, independente do que aconteceu na noite do show, ela e Fernando continuaram namorando, noivaram, casaram e formaram uma família. Fim da história.


Embora não fosse.


- Me sinto tão culpada... – Stefanie retomou o monólogo depois de agradecer a água e tomar um gole. - Ele sempre amou você, Clara. Era claro que não havia esperança para nossa relação. Era claro que um filho não seria suficiente para salvar nossa vida…


Pela primeira vez o olhar das duas encontraram-se. Clara com semblante de inquietação. Ao perceber Stefanie buscou empertigar-se:


- Poupe-me do seu julgamento - disse Stefanie assumindo um tom de voz mais coerente com a imagem que normalmente destilava em suas redes sociais. - Eu era jovem e não fui a primeira e nem serei a última mulher a fazer isso.


Mas Clara não julgava. Ou melhor, não se surpreendia. Não com a gravidez planejada, é claro. Na verdade, o que lhe causava inquietação ainda eram os motivos nebulosos por trás daquela visita, da entrega do diário, da confissão sobre um pecado de mais de dez anos atrás. Um segredo que nunca foi segredo e que há muito tempo deixou de importar.


- A culpa pelo acidente é minha - Clara juntou forças pra dizer. Lutava contra esse sentimento desde o momento em que despertou depois do acidente. Não deixava de ser irônico, porém, que tenha pela primeira vez admitido a culpa que sentia em voz alta para arrefecer a culpa daquela mulher. - Aquela mensagem foi um erro. Nando vai acordar e vai voltar pra família, onde é o seu lugar.


- Você acredita que ele seja o amor da sua vida? - perguntou Stefanie depois de refletir sobre as palavras de Clara, como se a ligação entre elas e a sua pergunta fosse óbvia.


- Já acreditei - Clara respondeu com naturalidade, como se realmente acreditasse na mentira que durante anos contou pra si mesma.


- Consegue imaginar quantas vezes me perguntei o que, afinal, o Fernando viu de tão especial em você? - A pergunta retórica fortalecia a linguagem petulante de Stefanie. - Eu perguntei se você acredita que ele seja o seu verdadeiro amor. Por Deus, Clara, você acaba de passar por uma experiência de quase morte! Como não consegue pensar antes de responder uma pergunta tão importante?


Com efeito, Stefanie levantou-se, encarou o próprio reflexo no espelho por um momento e caminhou até a saída do quarto, fazendo um barulho comedido ao fechar a porta.


Clara suspirou aliviada sem perceber que mal havia respirado durante toda a visita. Mas depois do alívio, a dúvida. Quais foram as reais intenções de Stefanie, afinal? Sabendo, porém, que não encontraria as respostas, contentou-se em abrir o caderno mais uma vez. Em mais uma página aleatória.

“Meu amor

Vamos falar sobre o passado depois

Porque o futuro está esperando

Por nós dois.”


Sorriu novamente, tomada por um conforto estranho. Tinha cheiro de esperança e hálito de cigarro mentolado. Abraçou o diário contra o peito num gesto tipicamente adolescente e cantarolou os versos molhados de sal:


-Ah, Nando...

“Eu já matei você mil vezes

E seu amor ainda me vem

Então me diga quantas vidas você tem?”



No carro, Stefanie acabava de retocar a maquiagem usando a câmera do celular quando recebeu a mensagem de Ana:


- Você vem?

- Sim. Estou indo.

- E o Nando?

- Deixei com quem deveria tê-lo deixado há dez anos.




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