CONTO: Acerto Crítico (ou não)
- IA Santos
- 27 de jan.
- 9 min de leitura

Aquela era uma Norm de outrora. De antes da miséria, da morte e corrupção. Aquela era uma Norm de antes da Tormenta. De quando os cavaleiros garbosos ainda desfilavam sobre o tapete vermelho de pétalas acenando para plebeus que não enxergavam, fosse pelos raios de sol ou por indiferença. Aquela era Norm, lar da Ordem da Luz, orgulho de Bielefeld, exemplo pro mundo.
Em Norm os dois caminhavam, conversando amenidades, sem ideia do futuro. De Norm. Do próprio.
- Engraçado como sempre falam sobre os “tapetes de pétalas de flores”, mas nunca da bosta dos cavalos…
Tonny Lee ouviu aquilo e olhou para cima tentando captar alguma coisa no amigo que talvez pudesse trazer algum sentido àquele comentário aleatório. O que viu era algo entre zombaria imberbe e revolta genuína. Tinha certeza que Spike também não saberia dizer.
- Provavelmente me arrependerei de perguntar, mas de quem, diabos, você está falando?
Dessa vez foi Spike que encarou o companheiro com olhos de interrogação. Como ele poderia não enxergar o que era óbvio? Mas lembrou que Tonny Lee era um halfling, o que explicava a ausência de perspicácia, afinal os pequeninos só eram espertos demais dentro de seus próprios domínios o que só provava que no fundo não passavam de sujeitinhos estúpidos. No entanto, também sabia que essa era uma visão precipitada, superficial e preconceituosa sobre umas das raças mais estoicas e versáteis criada pelos deuses. Quem concordava com isso era o verdadeiro estúpido. Ou não.
Mas nada importava porque nem ele e nem Tonny Lee eram homens estúpidos e nem halflings. Ou melhor, Tonny Lee era um halfling, mas era definitivamente diferente de todos os outros halflings. Chamá-lo de halfling era o mesmo que chamar um cocatriz de galinha. É verdade e ao mesmo tempo não é. E vice-versa.
- Ei Spike!
- O que?
- Não vai me responder?
- Responder o que?
- Quer saber? Esqueça!
Tonny revirou os seus trapos até encontrar o cantil. Tomou um gole que fez queimar a garganta como Azgher fazia arder sua pele avermelhada, besuntada por uma camada de suor etílico que deixava em evidência os músculos cultivados através de uma rotina de treinamento árdua e constante.
- Eu falava dos malditos bardos, Tonny - disse Spike quase uma hora depois. - Foi por culpa desses filhos da puta que aquele garoto saiu de casa quando tinha dez anos sonhando em ser aventureiro em busca de tesouros e fama e acabou com um machado de goblin enterrado na cara. Depois ainda querem culpar o mestre…
“Que garoto?”, “Que mestre?”. Tonny Lee pensou em perguntar, mas desistiu quando viu que Spike tentava trocar sua maça de combate pelos balões de uma garotinha que procurava seus pais em meio a multidão.
Aquele era um dia de festa. O Festival da Virada das Estações era um dos feriados mais famosos de Norm. Três dias de bailes, torneios e encontros, onde tibares trocavam de mãos e cavaleiros de amantes na mesma velocidade, com seus melhores trajes sobre o lombo de seus garanhões. O que todos esperavam, no entanto, era a grande liça de Sir Glaudir, sem dúvida nenhuma o ápice dos festejos.
Todos conheciam a história de Sir Glaudir, o Marquês de Espadas. Um plebeu tornado nobre pela vontade dos deuses, quando o colocaram no caminho do Conde Vercion e de sua família durante um ataque de selvagens às margens do rio Púrpura.
Glaudir nunca foi um bom guerreiro. A sorte é que os assaltantes eram muito mais mortos de fome desesperados do que os violentos bárbaros das tribos de Atalaka ou Vírdia, que costumavam ameaçar a cercanias. Aliás, mesmo o velho conde Vercion, ainda que carregando nos ombros quase sessenta invernos, seria capaz de dar cabo dos criminosos, não fosse o azar de ser picado por uma cobra uma noite antes do ataque.
Sorte ou azar, mesmo sem saber lutar o jovem Glaudir salvou a vida do conde e sua família e foi recompensado. Tornou-se cavaleiro, recebeu títulos e terras e prosperou. Sobreviveu a uma ou duas guerras e foi destacado pela Ordem como protetor da Marca das Espadas. Assim ficou conhecido como Marquês de Espadas. Casou, teve sete filhos e morreu velho em uma cama quente desejando apenas uma coisa.
- Aqui diz que o tal marquês deixou em seu testamento o desejo de que sua espada e escudo fossem entregues a alguém que tivesse força e coragem para mudar seu destino - disse Tonny Lee mostrando cartaz.
- Aí também diz que a espada e o escudo do velho Glaudir tem poderes mágicos? - ironizou Spike
- Não.
- Tanto faz.
A Liça era um esporte tão democrático quanto sangrento. Montava-se uma espécie de arena rústica cercada por toras de madeira e ali entrava quem possuísse coragem suficiente, não importando se nobre ou plebeu. Mulheres e até crianças podiam lutar. Todos lutavam ao mesmo tempo; um contra todos e, porque não, todos contra um, em um combate com pouquíssimas regras. As mortes não eram bem vistas, mas por vezes não podiam ser evitadas. Poucos observavam o que na verdade era peculiar: a liça era um tributo ao caos nas entranhas da cidade de quem Khalmyr, deus da Ordem e da Justiça era padroeiro.
Uma fila enorme dava voltas na arena reunindo todas as camadas sociais de Norm, de nobres a mendigos, dispostos a combater na liça por motivos diversos que poderiam ter ou não qualquer relação com a premiação. Tipos variados, dos truculentos, com armas que tinham quase seus tamanhos, aos mais esguios, protegidos por armaduras leves e lâminas finas, confiantes de sua agilidade para triunfar. E havia Tonny Lee.
- O senhor tem certeza que entrará desarmado? - questionou o guarda responsável pelas inscrições quando percebeu que o halfling não carregava consigo armas e armaduras de nenhum tipo. - Não seremos responsabilizados por quaisquer ferimentos mais graves.
Tonny abriu a boca, mas foi interrompido:
- Carimba logo esse papel, seu bunda-mole! - ordenou Spike metendo-se entre o amigo e o guarda. - Com Khalmyr como testemunha, esse baixinho aqui é o único cara que eu conheço que pode me matar.
Sem reação o homem acabou por permitir sua passagem.
- Eu falei sério - disse Spike.
- Tá bom - Tonny desconversou.
Os dois entraram na arena prontos para o combate. Spike carregava uma maça curiosa, polida a exaustão em alguns pontos e completamente enferrujada em outros. Vestia placas desencontradas de couro e metal que protegiam ombros, axilas e coxas, mas deixavam expostos pescoço, cabeça e peito. Tonny nem isso. Contava apenas com trapos e mãos vazias e isso deveria bastar.
O lugar parecia um curral apertado, apinhado de homens que talvez tivessem vencido uma ou duas brigas de tavernas acreditando que isso seria suficiente para sairem vitoriosos da turba. É verdade que observando com mais cuidado poderia-se destacar um punhado com algum talento. Garotos duros, que seriam invariavelmente absorvidos pela milícia ou por guildas de marginais caso não decidissem apostar contra a sorte rastejando por masmorras nos ermos. Porém, a grande maioria da massa violenta era composta por pulhas, nobres ou plebeus sem nenhuma técnica ou instinto de sobrevivência. E esses logo seriam devorados.
As trombetas soaram sobre uma gargalhada no mesmo instante em que dois homens indistintos foram nocauteados. Uma onda de sangue e dentes dominou a arena poucos segundos depois do combate começar, regurgitando desafiantes arrependidos, alguns há tempo de fugirem outros, tarde demais, enquanto Spike delimitava seu perímetro com força desproporcional.
Em algum lugar da arena, Tonny Lee também deixava sua marca, diante de um combate tão confuso quanto fácil. Seus movimentos eram precisos, ao contrário da enorme massa disforme de carne e cheiro de suor que distribuía golpes a esmo se enxergar adversários. A força de seus socos e chutes traíam seu tamanho, cada um suficiente para nocautear um oponente. Não demorou muito para que um grupo de homens armados com pedaços de madeira ou de coisas mais letais esquecesse o que era considerado covarde e se juntasse contra o inimigo diminuto.
Tonny Lee abriu um sorriso largo e feroz diante dos dez ou doze homens que dentro de instantes cairiam vítimas do grande Tornado de Nimbarann.
E do outro lado, ao contrário de Tonny, Spike apanhava. Apanhava e gargalhava e era cirúrgico na escolha de seus adversários. Os nobres e burgueses sucumbiam sob sua maça enquanto os grupos aleatórios de desdentados castigavam-lhe as costas e os flancos, derramando o sangue do clérigo e recebendo apenas impropérios como retaliação. “Khalmyr! Khalmyr!!”, Spike bradava e partia ossos. Quebrava costelas, braços, pernas e vez ou outra mastigava uma orelha ou amassava uma têmpora. Sentia que era ali era o lugar em que deveria estar, assim como poderia estar em qualquer outro.
É claro que nem Spike, nem Tonny Lee e nem ninguém na arena percebeu quando a garotinha dos balões que havia perdido seus pais olhou incrédula para o céu depois que sentiu um pingo de chuva em sua mão. Azgher havia estado inspirado pela manhã e nem mesmo um druida poderia prever a chegada das nuvens negras que cobriram Norm naquele início de tarde.
Mas o inesperado tornou-se certeza e a tempestade caiu sobre a liça, encharcando os poucos que ainda estava de pé, entrando pelas narinas e bocas dos inconscientes, criando poças vermelhas do sangue que escorria dos milhares de ferimentos.
Ouviu-se um estalo quando a maça de Spike encontrou as costas de alguém que tentava levantar depois de ser despertado pela chuva e pelo silêncio que precede a histeria.
Restava somente os dois.
- Está sentindo esse cheiro, Tonny? - gritou Spike mal conseguindo enxergar o através da cortina de água. - Fede a um matadouro de porcos, mas o bardo só vai contar sobre como a chuva adicionou um tom dramático ao clímax do nosso duelo.
- Os itens já são nossos, Spike - respondeu Tonny Lee percebendo algo de estranho nas palavras companheiro. - Não precisamos lutar.
- Tem razão, não precisamos. Você só precisa se entregar.
Spike riu da própria piada porque sabia que Tonny, o Tornado de Nimbarann jamais iria entregar uma luta. Não que fosse um homem particularmente vaidoso, mas havia alguma coisa em sua honra de lutador que o proibia de desistir ou recuar diante de um combate.
- Você sabe que não vou fazer isso - lamentou Tonny.
- Eu também não! - Spike atacou de surpresa, como se investisse contra seu pior desafeto.
Tonny não sabia o que esperar daquela atitude: Spike poderia interromper o ataque, parar a maça cheia de sangue a poucos centímetros de sua cabeça, gargalhar e entregar a luta; ou bater mais forte do que havia batido em todos aqueles infelizes de ossos quebrados que jaziam no chão. As atitudes imprevisíveis combinadas com as técnicas viscerais faziam dele um oponente perigoso, que não devia ser subestimado Além disso, aquele ínfimo instante de hesitação tornou qualquer possibilidade de esquiva impossível. A única maneira de evitar a maça era com as próprias mãos.
Quando sentiu o impacto no antebraço, Tonny percebeu que não havia brincadeira no ataque de Spike (ou ele achava que a brincadeira seria mais divertida se fosse levada a sério?). A dor do osso esmagado, aliada a reação do instinto que fez com que contra-atacasse.
Foi um chute.
Um chute.
- Aquele é você. Ou não? – afirmou o velho de rosto cinzento e borrachudo, com um sorriso cheio de dentes podres que brilhavam feito ouro, apontando para o cadáver jogado displicente no meio da arena.
Ele usava uma casaca verde roída por traças casaca e uma cartola da mesma cor. Parecia se divertir com o pescoço quebrado em um ângulo impossível e com o silêncio fúnebre do público depois da surpresa.
O halfling diante do corpo sem entender como havia acontecido. Estavam ao lado da cena, mas ninguém parecia notar-lhes.
- Você planejou isso? – perguntou Spike enquanto saboreava a sensação de enxergar a si mesmo jogado no chão. Morto. Ainda não sabia se aquilo lhe era bizarro, divertido ou ambos!
- Eu tenho mesmo cara de quem faz planos? - o velho gargalhou enquanto tirava de um dos bolsos dois sanguessugas que encontrariam a razão de sua existência como dados de vinte lados.
Spike tentou argumentar, mas se calou quando percebeu que clérigos de Khalmyr corriam para tentar salvá-lo, passando pelo seu corpo sem enxergá-lo. Foi acometido por um enjoo súbito e vomitou litros de um néctar que parecia de groselha, mas tinha sabor de tamarindo.
Só depois de muito tempo conseguiu falar:
- Um chute não poderia quebrar meu pescoço daquele jeito. É impossível!
O velho gargalhou ainda mais alto e um raio cortou as nuvens negras e fulminou, aleatório, um cavaleiro que cortejava uma nobre apetitosa. Logo, o sol voltava a aparecer diante de olhares estupefatos.
- A culpa sempre acaba sendo do mestre, não?! – o velho se contorcia em espasmos e tosses – Só mesmo um “clérigo de Khalmyr” para achar que alguma coisa é impossível.
E Spike, que passou a vida inteira adorando o Caos transvestido de Ordem, estremeceu de antecipação diante das palavras que se seguiriam:
- O que aconteceu não era impossível, meu caro. Era imprevisível. Qualquer um entre aqueles homens ordinários conseguira acertar aquele chute. Mesmo a menina dos balões. Mesmo sem querer. Bastaria a coragem de flertar com o caos.
E então rolou os dois dados sobre um tabuleiro invisível suspenso no ar:
Vinte.
Vinte!
I.A. Santos
(Dedicado a Guilherme, Gustavo e J.M. Trevisan)
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